A África Insubmissa: os mais velhos como produtores de conhecimento

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Flávio Facha Gaspar.

Começo esta reflexão com o ditado de origem Africana, segundo qual “Em África, quando morre um mais velho é uma biblioteca que se queima”. Esta frase em grande medida é um indicador para depreendermos como a elaboração de conhecimentos no continente acontece. Por um lado, a figura dos mais velhos, entendidas como conhecedores e sábios, por causa das suas experiencias vividas. Por outro, a questão da oralidade, já que no continente, a oralidade se constitui como o meio principal através do qual os conhecimentos são passados.

Os conhecimentos e saberes no continente Africanos são passados através da oralidade. Uma boa parte das culturas africanas está baseada na tradição oral, a mesma ocupa um espaço pertinente na maneira que os povos enxergam e se enxergam no mundo, ou seja, a sua cosmovisão está imbuída e é percebida com e através da oralidade. Para entendermos melhor trarei exemplos.

Segundo Amaro (HÂMPATÉ, 2010), a tradição Bambara do Komo ensina que a palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ou seja, as palavras não se constituem como meramente uma entoação através do qual podemos transmitir uma mensagem, mas é e sobretudo um elemento essencial de elo entre Deus e os homens.

O objetivo desta reflexão está na tentativa de colocar em destaque outras epistemes, e como tal, é preciso ampliar as formas de se fazer ciência fora do eixo ocidental do que seria produzir conhecimento ou considerar ciência.

MBEMBE, Achille.África insubmissa:cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Luanda: Ed. Pedago, 2013.

Segundo Bourdieu (2013), uma revolução cientifica encontra terreno mais fértil numa contra-comunidade. No entanto, nossa intenção não é percorrer este caminho. Porque seria fácil colocarmos o sul global em oposição ao norte global, entre o norte desenvolvido e o sul subdesenvolvido, entre aqueles que possuem o monopólio em sentido mais amplo de produção daquilo considerado eminentemente cientifico e os que precisam demonstrar serem capazes de produzir ciência dentro dos paradigmas instituídos pelo norte global.

Bloor (2008), diz que a exaltação da experiência como fonte do conhecimento pode ser vista como que encorajando os indivíduos a confiar nos próprios recursos físicos e psicológicos a fim de chegar a conhecer o mundo. Esta visão se aproxima do que sucede no continente Africano, no entanto, a produção de conhecimentos no continente está além da experiência adquirida ao longo do tempo, pois, estes conhecimentos são colocados em testes pelo conselho dos anciãos. Embora, esta forma de produção de conhecimento se aproxima também ao monopólio da autoridade cientifica, que possui a capacidade técnica e o poder social (BOURDIEU, 2013). No conselho de anciãos encontramos, jovens e mulheres. O que pode ser um indicativo de maior pluralidade na forma de constituição do que seria as autoridades que anuem o que seria considerada ciência consistente.

De ressaltar que não estamos numa postura de refutar as formas de se produzir uma sociologia da ciência, outrossim, de reconhecer as potencialidades e entender os limites de operacionalização em outras latitudes, que possuem cosmovisão de mundo diferentes e próprias.

Com esta reflexão tentamos colocar a baila outras epistemes que poderiam nos ajudar a ampliar as formas de produção da ciência e que tenha sentido para as pessoas que são sujeitos e alvos desta ação. Por isso, o titulo de África Insubmissa, em alusão a livro do intelectual contemporâneo Camaronês Achille Mbembe.

 

Referências

HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed – Brasília: UNESCO, 2010.

BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. Editora Unesp. São Paulo, 2009.

BOURDIEU, Pierre. A sociologia de Pierre Bourdieu. Editora Olha d’Água. São Paulo, 2013.

MERTON, Robert K. Ensaios de sociologia de ciência. Editora 34. São Paulo, 2013.

 

 

 

 


Science Studies e a pesquisa em Administração

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Larice Steffen Peters.

A academia está preparada para encarar à ciência através dos Science Studies? O estudo da ciência – do que pode ou não ser chamado como tal – e da demarcação científica ao longo da história se mostrou como uma arena de disputas, disputas que foram importantes e que estavam ancoradas em determinado contexto temporal e histórico. Viuse o protagonismo de determinadas áreas do conhecimento, o papel nobre do cientista e uma busca – quase incansável – de tentar provar que a ciência é neutra. Só que, com os autores de Science Studies, parece-nos haver uma virada na compreensão do que é a construção científica, sai de cena uma discussão epistemológica para dar espaço para o campo de prática científica na qual o cerne está na aproximação de onde a ciência se realiza.

Bourdie (2013) reforça, sabiamente, que falar de ciência é falar de poder. Essa tentativa de dominar o poder pode ser visualizada no aumento das revistas e editoras predatórias, as quais priorizam seus próprios interesses em detrimento do que – ao longo dos anos – foi sendo caracterizado como conhecimento e ciência (BU UDESC, 2023). Tais publicações são caracterizadas por disseminar informações falsas, por cobrarem elevados valores dos autores para garantir a publicação e, dentre tantos outros problemas éticos, não agirem com transparência. Mas, por mais que a academia – pelo menos no âmbito da Universidade do Estado de Santa Catarina – alerte para tais fatores, elas seguem ganhando espaço e se pulverizando. Qual será o motivo? Talvez, as regras do jogo impostas pela própria academia e pela busca exacerbada por volume de publicações.

Nesse campo de disputa de poder, outro fator que nos leva a questionar se a academia está preparada para os Science Studies é a predominância de uma visão eurocentrista e americana na análise da relevância das publicações (e no definir o que é ou não científico), além, da priorização – em muitas situações – de trabalhos com características apenas quantitativas e da exigência das publicações em língua inglesa. Reflexões que seguem nesse caminho foram objeto de discussões em uma live realizada pela Anpad em 2021 e, há um entendimento que existem regras do jogo já impostas para garantir determinadas publicações e alimentar a academia (Anpad, 2021).

Ilustrados, de forma bastante breve, alguns pontos que desenham o cenário no qual a academia está inserida se faz o contraponto com os Science Studies – a prática científica. Merton (2013) afirma que existem consequências sociais dos trabalhos dos cientistas e defende que o éthos na ciência passa pela compreensão do universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo. No universalismo, a ideia principal é de que as normas e critérios para avaliar a qualidade do conhecimento científico devem ser aplicados de maneira universal, ou seja, não devem ser influenciados por fatores pessoais ou contextuais. Nesse sentido a reflexão que surge é: se há o predomínio da visão eurocentrista e americana em dizer o que é não ciência, qual o espaço para as publicações que retratam a realidade do Sul Global?

No comunismo, Merton (2013) defende que o conhecimento científico deve ser compartilhado abertamente entre os membros da comunidade científica, o que implica em compartilhamento de dados, métodos e descobertas visando o benefício coletivo. Em contraponto a tal concepção a prática na academia é marcada por revistas que requerem altos valores financeiros para serem acessadas, além da natureza privada e restrita de inúmeras bases de dados.

Ao falar sobre desinteresse, o referido autor apresenta que a principal motivação do cientista deve ser a busca pelo conhecimento e não interesses ou ganhos pessoais, ou em outras palavras: que os ganhos coletivos devem ser superiores aos ganhos pessoais (Merton, 2013). Sobre esse ponto, podemos nos deparar com tantas camadas que chega a ser difícil colocá-las no papel: interesses privados – de grandes grupos econômicos e políticos - no desenvolvimento de pesquisas, cientistas que se submetem a divulgação de pseudociência, etc.

Por fim, ceticismo organizado, no qual está em voga a atitude crítica e questionadora em relação às teorias existentes (Merton, 2013). Nesse ponto, acreditamos que é mais fácil de encontrar um alinhamento com o que está em prática na academia. 

Considerando outro autor dos Science Studies, gostaríamos de falar de Bloor (2009) que afirma que a ciência não está além da sociedade e daqueles que a estudam. Para além dessa afirmativa, apresenta-se o item reflexividade defendido pelo autor ao discorrer sobre o Programa Forte: reflexividade está ligada à ideia de que a sociologia da ciência não está isenta de suas próprias influências sociais e culturais, o cientista – no caso, o sociológo – deve ser reflexivos em seu próprio papel na construção do conhecimento e de como suas próprias perspectivas sociais podem influenciar suas análises. Há de se considerar, para Bloor (2009), que a posição social do cientista e suas influências estão também interligadas à prática científica social. Da reflexividade, o ponto de comparação com a academia é em relação a neutralidade do cientista – algo que me nossa visão, por mais que seja uma constante busca, não existe. 

Aproveitando a reflexividade trazida por Bloor, há também que se retomar que Bordieu (2013) possui uma visão do campo científico como um campo de lutas e aqui, entra em cena o papel do pesquisador em Administração e a postura que dele se espera – ou deveria se esperar – se ele compreender que está inserido em um campo de prática científica e tiver uma postura que vá ao encontro dos Science Studies.

Sabe-se que existem desafios já impostos na academia, mas sabe-se que com determinadas ações é possível traçar e reforçar novos caminhos. Considerando que a prática científica requer os pontos defendidos por Merton (2013), que há a reflexividade (Bloor, 2009), que o campo científico é um espaço de lutas (Bordie, 2013) e que o pesquisador é um agente – não neutro – dentro desse espaço destacamos a necessidade de se considerar o impactosocioambiental nas pesquisas em administração.

Alpersted e Andion (2017) chamam atenção para a necessidade do impacto social da pesquisa científica, sendo essa uma temática que deve ultrapassar os muros do Brasil e, que vai além da academia posto que é sentida e vivida na e pela sociedade. A ciência social é um saber – na palavra das autoras – situado, ou seja, ele está imbricado no enfrentamento das situações problemáticas da vida em sociedade. Para além disso, elas ainda apontam que a natureza da administração é uma natureza de ciência das práticas e não deve se afastar da realidade, muito pelo contrário, é na realidade que o pesquisador de administração deve atuar de modo que possa ser transformado e transformá-la. 

Seguindo a mesma linha, Ventura e Davel (2021) afirmam que a preocupação com o impacto socioambiental deveria ser fator onipresente em todas as pesquisas e práticas científicas. A postura dos autores está pautada na problemática que questões socioambientais negligenciadas reforçam as desigualdades sociais porque seus primeiros impactos – sempre – são sentidos primeiro pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade. 

Por fim, como pesquisadores e cientistas da área de Administração, sabemos que devemos ter como éthos uma pesquisa que seja capaz de transformar as realidades sociais.

REFERÊNCIAS

ALPERSTEDT., G.D.; ANDION, C. Por uma pesquisa que faça sentido. Perspectivas. São Paulo, RAE/FGV-EAESP, V.57, n.6, nov-dez 2017, p. 626-631. 

ANPAD. Live Anpad: [ODPs] Pesquisa Qualitativa em Administração: Unindo Rigor e Relevância. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fZntfgKsvz4. Acesso em outrubro, 2023.

BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Introdução. 

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013. 

BU UDESC. Folder Revistas Predatórias. não caia nessa. Material informativo compartilhado por e-mail institucional. Outubro, 2023

MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013. 

VENTURA, A.; DAVEL E. Impacto socioambiental da pesquisa (Editorial O&S), 2021. 

O papel das estruturas sociais e das instituições na análise de políticas públicas

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Ricardo Lonzetti


Uma abordagem de pesquisas que se incluem no campo dos estudos sobre mudanças em políticas públicas é a análise das discussões e do processo decisório que ocorre em eventos constituídos para debater e elaborar as propostas reformistas e, assim, descrever as propostas de mudança, os atores e instituições envolvidos, seus interesses e as dificuldades encontradas para que haja consenso para a consecução de determinada política. Tais pesquisas buscam contribuir para a compreensão tanto da mudança quanto da dinâmica e da estabilidade da agenda de determinada política pública. Isso pode ser alcançado tendo-se como foco a análise do papel das crenças, ideias e valores que a direciona.

O estudo do processo de formação da agenda de políticas públicas, a propósito, pode subsidiar a elaboração de políticas, aumentar a eficiência na alocação dos recursos pelos agentes privados ou ainda ajustar as contas públicas. Schneider e Ingram (1997) elevam o status e a importância das políticas públicas para além de instrumentos técnicos que podem ou não resolver os problemas contemporâneos. Políticas públicas são, assim, ferramentas para assegurar os valores democráticos para todos. Esta visão, corroborada por Sidney (2007), reclama por análises que se preocupem não só em demonstrar o quão efetivamente políticas públicas podem mitigar problemas sociais, mas em demonstrar o grau em que promovem os valores democráticos, ou seja, inspiram a participação política e desencorajam a divisão social.

Para que se proceda tal análise, é apropriada a abordagem teórica do Modelo de Coalizões de Defesa (ACF), elaborado por Sabatier (1993) e pesquisadores associados, em especial Hank Jenkins-Smith, como suporte consistente para a compreensão das mudanças na agenda da política e dos atores e instituições envolvidos na sua conformação. Agenda, aliás, conforme Kingdom (1995), se refere à lista de assuntos ou problemas para os quais atores, governamentais e não-governamentais associados àqueles, estão prestando atenção em determinado momento. Desse modo, conforme proposto pelo ACF, se reconhece que tais atores integram subsistemas de políticas, de modo que o conceito de agenda é tratado como o conjunto de temas que são alvo da atenção dos integrantes dos subsistemas de políticas públicas.

Muito da ênfase do ACF é na estrutura das crenças das coalizões de defesa competitivas e nos padrões de mudança dessas crenças. O Modelo busca auxiliar na compreensão de quadros complexos de políticas, permeados por atores que percebem o mundo de acordo com distintas e particulares visões, moldadas pelos sistemas de crenças. O modelo apresenta uma perspectiva integradora, que abarca aspectos importantes da realidade complexa e mutável que marca a formulação de uma política pública, dando especial atenção aos sistemas de crenças hierarquicamente estruturados, os valores e ideias que os suportam, assim como aos efeitos de eventos exógenos que podem explicar mudanças nesta política. Contudo, em geral, as pesquisas que adotam o Modelo não integram a dimensão institucional para proceder a análise - para fins de objetividade, imagino.

Devo reconhecer que o processo de formação de agenda é essencialmente um processo político, porque é conduzido por meio da negociação entre múltiplos e concorrentes interesses. Esse reconhecimento é suportado no entendimento proposto por Laswell (1958), de que de política é o processo por meio do qual a sociedade determina quem consegue o que, quando isso é alcançado e como se chega ao resultado esperado. Embora essa seja uma definição simples, podemos discernir, em seus próprios termos, três aspectos essenciais da política: a competição para se obter certos recursos - às vezes à custa dos outros, a necessidade de se cooperar para tomar decisões, e a natureza do poder político.

O processo de tomada de decisão a respeito de uma política pública, desse modo, ocorre em estruturas institucionais específicas, que dirigem, conformam e constrangem a abrangência das escolhas e resultados. Devo reconhecer, portanto, que arranjos políticos institucionais afetam de forma significativa os processos de política e seus consequentes resultados, incluindo a escolha de determinada alternativa pelos tomadores de decisão (policy makers), quais os interesses são representados ou quais os são os passos ou processos por meio dos quais as decisões são ou não são tomadas. Toda forma de decisão política, portanto, conforme lembrado por Ostrom (1990), pode ser vislumbrada como feita dentro de alguma forma de um arranjo institucional, que, por sua vez, afeta o comportamento individual e, por consequência, das coalizões.

Cada uma dessas questões opera em ambientes políticos complexos e interdependentes, onde muitos participantes interagem no contexto de arranjos institucionais aninhados, relações de poder desiguais e informações científicas e técnicas incertas sobre problemas e alternativas. Os autores do ACF, contudo, argumentam que esta complexidade inerente às políticas públicas requer uma simplificação conceitual para orientar as agendas de pesquisa, permitir a comunicação entre acadêmicos e profissionais e desenvolver estratégias efetivas de tomada de decisão. Esse é um ponto de vista reducionista, convenhamos. Reconhecer a questão institucional é mais do que considerar as instituições como outra variável que deve ser adicionada à multiplicidade de outros fatores de potencial relevância nos estudos a respeito do processo de políticas públicas.

As instituições, entendidas como procedimentos formais e informais, rotinas, normas e convenções inseridas na estrutura organizacional, estruturam a relação entre os muitos outros fatores de maneiras que podem afetar significativamente os resultados esperados. De acordo com Steinmo et al. (1992), as variáveis institucionais influenciam a agregação de preferências, regulam a velocidade do processo político, fornecem aos atores pontos de veto e equilibram as relações de poder dentro do sistema político. Instituições, além disso, definem quem são os atores que precisam aceitar uma proposta de solução para que determinada política seja implementada. De outro modo, os autores dessas soluções definem estratégias que os empreendedores de políticas podem empregar para obter o consentimento dos atores com poder de veto.

Entendo, desse modo, que as ideias de Bourdieu (1990) ajudariam não apenas identificar e descrever valores, opiniões e ações de diferentes atores numa situação, mas sim explicar as estruturas sociais que estão ligadas à possibilidade de surgirem esses valores, opiniões e ações. Ou seja, se aplicarmos tais ideias ao processo político e, consequentemente, à mudança política, poderíamos compreender as estruturas sociais que determinam e produzem valores, opiniões e ações das coalizões dominantes num subsistema político. Desse modo, poder-se-ia demonstrar como a mudança política resulta quando houver uma mudança nas estruturas sociais ligadas ao campo do subsistema político, permitindo que um grupo de indivíduos compartilhe os mesmos valores e os torne dominantes.

O trabalho de Bourdieu se caracteriza pelo fato de propor uma alternativa ao debate clássico entre o objetivismo (estruturalismo) e o subjetivismo (construtivismo) nas ciências sociais. Sugere, assim um "construtivismo estruturalista". O que significa que a realidade social é historicamente construída e é formada por estruturas cujas práticas moldam as ações e as percepções do indivíduo.

Em outras palavras, as ações, os valores e as percepções dos indivíduos não são produzidos individualmente por uma ligação às estruturas sociais, ao subsistema político, por exemplo, mas são o resultado de disputas entre indivíduos e são socialmente construídas. Cada subsistema de política, ou ‘campo’, para usar um temo do autor, tem as suas próprias regras (doxa) e estrutura. Os indivíduos que pertencem a um campo, ou melhor, agentes, estão envolvidos e acreditam nas regras do campo (illusio). O campo, assim, seria composto por diferentes agentes, cuja posição social depende da sua quantidade de capital, seja econômico, simbólico ou técnico. Em função da sua posição num campo e da sua posição noutros campos e trajetórias, os agentes desenvolvem determinados valores, crenças e opiniões integrados num sistema de percepção e ação (habitus).

Imagino enfim, concordando em partes com os autores do ACF, que considerar o aspecto institucional e trazer sua inerente complexidade à análise de políticas públicas requer uma sofisticação conceitual que se traduz em um desafio na orientação das agendas de pesquisa, na comunicação entre acadêmicos e profissionais e no desenvolver estratégias efetivas de tomada de decisão. Por outro lado, num primeiro momento, o entendimento das estruturas sociais e das instituições pode colaborar significativamente análise de uma política pública e, em um outro momento, na sua própria elaboração e desenvolvimento.

 

Referências

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

LASSWELL, Harold D. The Decision Process. Seven Categories of Functional Analysis, College Park: University of Maryland Press, 1956.

OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. New York: Cambridge University Press, 1990.

SABATIER, Paul A.; JENKINS-SMITH, Hank C. (Eds.). Policy Change and Learning: An Advocacy Coalition Approach. Boulder: Westview Press, 1993.

SCHNEIDER, Anne Larason; INGRAM, Helen. Policy Design for Democracy. Lawrence: University of Kansas Press, 1997. 241 p.

SIDNEY, Mara S. Policy Formulation: Design and Tools. In: FISCHER, Frank; MILLER, Gerald J.; SIDNEY, Mara S. (orgs.). Handbook of public policy analysis: theory, politics and methods. Boca Raton / London / New York: CRC Press, 2007.

STEINMO, Sven; THELEN, Kathleen; LONGSTRETH, Frank. (Eds,). Structuring Politics - Historical institutionalism in comparative analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.


Visão dos diferentes: uma troca entre amigos

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ana Gabrielle Neves de Oliveira.

Quando pensamos em epistemologia, pode acontecer de nossa cabeça tomar vários caminhos. Alguns pensam em filosofia, outros dão mais importância ao método. Muitos como eu, antes de entrar nessa disciplina, tentavam desvendar os mistérios de um conceito que parece fácil e difícil ao mesmo tempo: a ciência de como fazer ciência.

O ponto que quero trazer é um relato pessoal e fazendo um paralelo com um acontecimento real do campo de epistemologia. Por isso não poderia deixar de dizer que ao adentrar nessa disciplina com mais profundidade e ler (alguns) clássicos e sabendo que tenho muito no que mergulhar ainda, entendi uma coisa: é muito estudo.

Muito estudo da ciência, da sua teoria e prática. Confrontar visões não é algo simples, mas necessário. Necessário para nos desconstruirmos, reconstruímos, achar o que estava perdido.No final esta é uma prática essencial para quem quer se melhorar como cientista e pessoa.

Por estar envolvida em muitas leituras e no universo da epistemologia, achei um tanto curioso quando me deparei com a história de dois grandes pensadores da área: Imre Lakatos (1922-1974) e Paul Feyerabend (1924-1994). Acontece que os dois eram grandes amigos e se opunham fortemente do que é e como é composta a cientificidade.

Diferente do neopositivismo, da lógica da linguagem, da falseabilidade e das etapas de construção de argumentos teóricos e avanços da ciência, Imre e Paul não acreditavam que era bem assim que as coisas aconteciam. Certamente a maioria das pessoas da Academia já ouviram falar de Lakatos ou até o referenciaram nos métodos de seus trabalhos. Talvez, as contribuições deste autor tenham um grande incentivo de Feyerabend.

Lakatos nos trouxe a metodologia dos programas de pesquisa, o que é na minha opinião mais próximo do que conhecemos hoje nas Universidades. Cada programa teria um núcleo firme de teorias unânimes ou irrefutáveis pelos cientistas da área e uma heurística positiva rege modificações nas teorias auxiliares da primeira. Portanto, em uma visão global o avanço e a revolução da ciência se dá pela superação dos programas de pesquisa, uns aos outros. 

Fonte: https://blogs.lse.ac.uk/lsehistory/2023/01/27/imre-lakatos-and-lse/

Por outro lado, Feyerabend é conhecido pelo anarquismo epistemológico, ou seja, ele acreditava que a liberdade na produção do conhecimento é o mais importante para o progresso na ciência. E a ciência e seu progresso são entendidas de várias maneiras, não há somente uma certa.

Fonte: https://alexbretas11.medium.com/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76

Nesse sentido, Feyerabend nos diz que quanto mais teorias existirem, mais progrediremos. Ele contrapõe a lógica de uma construção linear do conhecimento e afirma que o contexto da justificação, as intersubjetividades da descoberta e do cientista os influenciam e assim deve ser. As “anomalias” nas teorias “irrefutáveis” existem e a confirmação da hipótese nunca se dá cem por cento. Por este motivo, não é certo desconsiderar as subjetividades dos indivíduos e se levar em conta formalidades excessivas. Para ele, a ciência deve ser democrática e discutida com a comunidade. 

Voltando a parte curiosa, Lakatos e Feyerabend foram dois grandes amigos que trocavam cartas e discutiam suas visões extremamente diferentes. No início de seu livro Contra o Método, Feyerabend diz:

Este ensaio é a primeira parte de um livro a propósito do anarquismo que seria escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posição racionalista; Lakatos, por seu turno, reformularia essa posição, para defendê-la e, de passagem, reduzir meus argumentos a nada. Juntas, as duas partes deviam retratar nossos longos debates em torno desse tema — debates que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, até quase o último dia de vida de Imre, e se transformaram em parte de minha rotina diária. A origem do ensaio explica o seu estilo: trata-se de uma carta, longa e muito íntima, escrita para Imre e cada frase perversa que contém foi escrita antecipando frase ainda mais ferina de meu companheiro. Também é claro que o livro, como se apresenta, está lamentavelmente truncado. Falta-lhe a parte mais importante, a réplica da pessoa para quem foi elaborado. Publico-o, entretanto, como testemunho da forte e estimulante influência que Imre Lakatos exerceu sobre todos nós. (FEYERABAND, p. 8, 1977).  

Portanto, o que virou um livro era uma troca de cartas com o amigo. Quando Lakatos morreu, Feyerabend resolveu publicar suas cartas sem respostas como um livro para homenageá-lo. Conforta o íntimo saber que entre ideias tão diferentes, havia tanta amizade e carinho um com o outro em suas tratativas.

Isso nos lembra que há muita vida para além da teoria. E que da teoria também emergem amizades. Essa é uma lição atual contra as armadilhas que o ego nos impõe. A vida nem sempre é fácil, pessoas são mais racionais, outras mais da liberdade, entretanto sempre podemos tornar tudo mais leve. 

Ultrapassando todo o contexto pessoal que eu não queria, mas fiz, pretendo levar esse aprendizado para a Academia que eu entro. Ela é diferente do que estes autores conheceram, o acesso é mais fácil, as coisas são mais rápidas, conseguimos reconstruir a parte que faltava no livro de Feyerabend.

Mas uma coisa não mudou. Somos todos pessoas, que precisam do convívio, de se achar entre seus entremeios e de seguir o caminho do bom convívio. E quando se tem (ou se faz) um grande amigo, ah, isso faz toda a diferença.

Referências:

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.  

 

A teoria da complexidade e a interdisciplinaridade na educação

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Lucas Sell Romão.

Atualmente, a educação enfrenta diferentes desafios decorrentes da rápida evolução do conhecimento e das demandas sociais. Como os processos educacionais são sistemas complexos, algumas mudanças podem levar a resultados imprevisíveis. Nesse contexto, a teoria da complexidade e a interdisciplinaridade podem ser promissoras para aprimorar o processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, este paper busca explorar as vantagens dessas abordagens quando integradas na educação, para promover uma aprendizagem mais significativa e preparar os alunos para o mundo.

Para entender melhor o paradigma da complexidade, é necessário conhecer o conceito de paradigma. Khun (1987), observa a dificuldade na conceituação de paradigma, onde, para o autor o termo é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica crenças, valores e técnicas partilhadas por membros de uma comunidade, e do outro lado, denota um elemento como modelos ou exemplos. Khun (2005, p. 43) compreende ainda o ser humano através do paradigma que está na realidade a sua volta, ou seja, dar-se o sentido do que é “certo” e “errado”.

O paradigma da complexidade faz oposição ao paradigma dominante tradicional atual, o qual parte da premissa dos fenômenos que podem ser analisados e compreendidos a partir das reduções do todo em partes. Le Moigne (2007), apresenta que ainda sofremos nas nossas instituições efeitos residuais do cientismo positivista, onde o paradigma tradicional dominante, que frequentemente chamamos cartesiano-positivista, pode, por contraste, ser apresentado sob o nome de paradigma da complicação ou paradigma do reducionismo. Para Vasconcellos (2005), o paradigma tradicional é considerado conservador e reducionista, centralizado em três âmbitos: simplicidade, estabilidade e objetividade.

Morin (2003), acredita que esse modelo cartesiano estuda a realidade a partir dos princípios da disjunção, da redução e da abstração, o que se caracteriza como o “paradigma do simplificador”. O autor destaca ainda, que os problemas mais graves da humanidade são frutos de um progresso cego do conhecimento. Esta cegueira está relacionada a fragmentação do conhecimento, oriunda do método cartesiano, que não consegue interpretar a complexidade do real e a ligação entre as partes, dificultando a produção do conhecimento.

Baeta e Melo (2020), comentam que o sistema de educação conhecido como tradicional, trata o processo de formação do conhecimento como um resumo dos elementos mais simples, separando o que se encontra articulado, gerando contradições e desordem ao pensamento. Já Silva e Santos (2023), destacam que, no contexto educacional, o conhecimento em pedaços repassado pelos professores aos alunos, influencia a visão que estes possuem da realidade. Ou seja, quando os alunos deixam de compreender a existência de vínculos entre as disciplinas também procuram compreender a realidade de forma fragmentada e desarticulada.

Fonte: https://ec317desamambaia.blogspot.com/2013/06/curriculo-oculto-discutindo-o-curriculo.html

Dessa forma, a visão fragmentada do conhecimento começa a ser questionada por ser insuficiente frente às situações de instabilidade, imprevisibilidade, incerteza, contradições, paradoxos, conflitos e desafios, levando ao reconhecimento. Segundo Morin (2003), é necessária uma visão mais complexa para incentivar a contextualização, a integração e a globalização dos saberes. É essencial que cada parte trabalhe para o todo e, que esse organismo desenvolva em conjunto os objetivos traçados, ou seja, as interações e relações irão ser compreendidas de forma intrínsecas dentro do contexto amplo desse sistema.

Para Morin (2003), o paradigma da complexidade pode resultar em um conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão se acordar, se reunir. Assim, o princípio da complexidade se fundamenta na predominância da conjunção complexa. Enquanto a antiga ciência unidimensional previa um único método para todas as ciências, a nova ciência estrutura-se por meio da comunicação do conhecimento físico, biológico e cultural.

A interdicisplinaridade ao buscar a interligação dos saberes se aproxima do paradigma da complexidade, e pode ser uma estratégia importante para quebrar a barreira linear cartesiana de ensino atual. Fazenda (1995), observa que a interdisciplinaridade surge como uma relação recíproca, de mutualidade, ou seja, um regime de copropriedade, de interação para possibilitar o diálogo entre os interessados. A postura interdisciplinar é compreendida como o estudo do desenvolvimento de um processo dinâmico, integrador e, sobretudo, dialógico, intensificando as trocas entre os especialistas e a integração dos conhecimentos.

Batista e Salvi (2006), acreditam que a interdisciplinaridade surgiu para compreender a realidade através dos diferentes conteúdos de cada disciplina. Dessa maneira, é possível que diferentes áreas do conhecimento interajam para alcançar um entendimento mais global e não dividido. Para Klein (1990), a interdisciplinaridade pode resolver questões que não são abordadas de maneira satisfatória, quando o professor faz uso de apenas um método de ensino.

Para Gerhard e Rocha Filho (2012), a interdisciplinaridade pensada como um processo contínuo e inacabado de construção do conhecimento permite que os professores trabalhem assuntos reais, incentivando a discussão, a análise, o questionamento e a verificação da veracidade dos fatos por parte dos alunos. Como uma estratégia pedagógica, a interdisciplinaridade promove o diálogo entre os conteúdos estudados, que fazem parte da vivência dos alunos dentro e fora da sala de aula. Serva, Dias e Alperstedt (2010), comentam que nenhuma disciplina poderá outorgar a si própria um lugar de onde deduzir um saber absoluto e final.

Sendo assim, é essencial que educadores e formuladores de políticas considerem a adoção de abordagens inovadoras. Fazendo isso, podem ajudar a construir um sistema educacional que esteja mais alinhado com as demandas da sociedade e que prepare o aluno para um futuro de constantes mudanças e desafios. Utilizar a teoria da complexidade com a interdisciplinaridade na educação pode ser uma importante ferramenta para enfrentar os desafios da sociedade, visto que essas abordagens se complementam, permitindo que os alunos desenvolvam habilidades de pensamento crítico e resolução de problemas em um mundo cada vez mais complexo e conectado. Piaget (1970), destaca que é necessário formar mentes que possam ser críticas, que possam analisar, ao invés de aceitar tudo que lhes é oferecido.

Ao adotar essa abordagem, é possível proporcionar aos alunos uma educação mais significativa, capacitando-os a lidar com desafios reais e a compreender as complexidades do mundo atual. Além disso, essa abordagem prepara os alunos para serem cidadãos mais informados e engajados, capazes de abordar questões complexas de maneira integrada. Dessa forma, a teoria da complexidade e a interdisciplinaridade na educação são fundamentais para a formação de indivíduos adaptáveis e conscientes, contribuindo para a construção de um futuro mais preparado para lidar com as complexidades da vida contemporânea.

REFERÊNCIAS

 

BAETA, S. R.; MELO, V. O apoio matricial e suas relações com a teoria da complexidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n..6, p. 2289-2295, 2020

 

BATISTA, I. L.; SALVI, R. F. Perspectiva pós-moderna e interdisciplinaridade educativa: pensamento complexo e reconciliação integrativa. Ensaio, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p.147-159, 2006.

 

FAZENDA, I. C. A. Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1995.

 

GERHARD, A. C.; ROCHA FILHO, J. B. A fragmentação dos saberes na educação científica escolar na percepção de professores de uma escola de Ensino Médio. Investigações em ensino de ciências, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 125-145, 2012.

 

KHUN, T. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

 

KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 

KLEIN, J. T. Interdisciplinarity: history, theory, and practice. Detroit, Michigan: Wayne State University Press, 1990.

 

LE MOIGNE, J-L. Inteligência da Complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. N 4 out/dez, 2007, p. 117-128.

 

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

 

PIAGET, J.; GARCÍA, R. Psicologia e pedagogia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1970.

 

SERVA, M.; DIAS, T.; ALPERSTEDT, G. D. Paradigma da complexidade e teoria das organizações: uma reflexão epistemológica. In: Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro. v. 50, n. 3, 2010. p. 276-287.

 

SILVA, F.; SANTOS, M. ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL E CURRÍCULO INTERDISCIPLINAR: análise de uma escola pública na Amazônia. Revista Espaço do Currículo, v. 16, n. 1, p. 117, 2023. Disponível em: https://scanr.enseignementsup recherche.gouv.fr/publication/doi10.22478%25252fufpb.2177-8841.2018v9n2.43537 Acesso em: 8 fev. 2023.

 

VASCONCELLOS, M. J. E. De. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, SP: Papirus, 2005.


Pragmatismo e a participação do cidadão no SUS

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Paulo Sérgio Cardoso da Silva.

A participação social no Sistema Único de Saúde está amparada, sobretudo, pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº 8.142 de 1990. Esta última deixa clara a existência de instâncias colegiadas, as conferências e os conselhos de saúde – tendo estes, caráter de representação e deliberação das demandas de saúde da população (BRASIL, 1990). O pragmatismo, por sua vez, enfatiza a importância da experiência, utilidade e adaptação como critérios centrais na busca do conhecimento e na tomada de decisões práticas – neste caso, decisões que estariam relacionadas à saúde da população. O objetivo deste paper é relacionar estas duas temáticas, apresentando o viés pragmático dos mecanismos participativos da saúde (CORREA, 2014; TIMMERMANS; TAVORY, 2012).

Fonte: http://arch.ensp.fiocruz.br/index.php/8-conferencia-nacional-de-saude-sessao-plenaria-brasilia-df

Conforme Dewey (1938) coloca, os conceitos abstratos só tem significado na medida em que podem ser utilizados de forma prática. Assim temos na democracia e participação social uma relevância, ora por apresentarem, quando eficazes, uma utilidade prática à sociedade, por meio dos seus mecanismos. Ainda neste sentido, vale destacar que, se a participação social não se dá de forma efetiva como foi pensada, cabe entendermos o que está por detrás das motivações destes atores em não participar, tal qual Correa (2014) coloca – e não de entender os fenômenos “crus”, que consideraria os elementos sociais como um problema por si só.

A partir do pragmatismo, entendemos que a participação social, precisa ser vivida e colocada em prática na vida e por meio da vida – e isso deve ser feito, por exemplo, através dos conselhos e conferências de saúde. Assim, o que se espera ao final deste processo é que os valores democráticos sejam transformados em ações sociais concretas. Na prática, por exemplo, poderíamos ter direcionamentos do que um gestor em saúde precisaria considerar nas suas ações executivas em uma Secretaria de Saúde – a partir dos interesses da sociedade representados pelas instâncias mencionadas.

A busca pelo conhecimento prático, é algo que um Conselho de Saúde traz em sua essência, por exemplo. Quando os representantes deste usufruem do seu espaço de fala para apresentar demandas do local em que vivem, temos a materialização das experiências em ações, a partir do conhecimento de cada ator. Este conhecimento, por sua vez, é validado e defrontado com demais representantes, em uma forma de construção que lembra uma lógica abdutiva, conforme expressado por Timmermans e Tavory (2012).

Fonte: https://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/uma-breve-historia-da-saude-publica-no-brasil-das-campanhas-sanitarias-ao-sistema-unico-de-saude/

Do ponto de vista processual, as reuniões nos conselhos de saúde ocorrem com periodicidade média mensal, e visam validar decisões da gestão, levar demandas locais, ouvir opiniões dos representantes, pensar em propostas de melhorias, entre outros objetivos.

Do ponto de vista prático, nem sempre os encaminhamentos dos conselhos são os mais pragmáticos, ficando muitas vezes em discussões pouco produtivas, com pouco impacto efetivo na vida real da sociedade. Caberia entender, de maneira aprofundada, o que faz com que, em alguns casos, estes mecanismos não estejam funcionando. Seria o modus operandi dos conselhos? A condução dos líderes desta instância? Seria o processo comunicativo de e para com estes atores? Seriam elementos políticos e jogos de interesse? Seria um pouco de tudo isso?

Em minha tese buscarei compreender um pouco dos elementos ligados ao processo de comunicação dos conselhos nos meios digitais – apenas uma fração de tantas variáveis, mas que pode nos fazer entender o por que de alguns conselhos estarem mais perto, ou mais longe do pragmatismo – que de certa forma é esperado pela sociedade que deseja ações concretas (e assertivas) sobre áreas que interferem diretamente na sua qualidade de vida.

Verdade é que, embora preciosa seja a construção à muitas mãos na lógica bottom up que estas instâncias se propõem, sua finalidade está no que efetivamente repercutirá sobre a vida do cidadão, da sociedade. Assim, espera-se que o pragmatismo não se distancie por completo dos conselhos e conferências (este primeiro mais aprofundado neste paper), a fim de termos nestas construções coletivas um mais efetivo Sistema Único de Saúde – extraindo o que de melhor o pragmatismo pode trazer a este meandro.

Referências:

BRASIL. Lei n° 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília: DF, 1990. 

CORREA, D. Do Problema do social ao social como problema: elementos para uma leitura da sociologia pragmática francesa. Revista de Ciências Sociais, n. 40, Abril de 2014, p.35- 62.

DEWEY, J. “Investigação Social” In: DEWEY, J. Lógica. Teoria de la investigación. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1938. 

TIMMERMANS, S.; TAVORY, I. Theory Construction in Qualitative Research: From Grounded Theory to Abductive Analysis. Sociological Theory. v.30, n.3, p.167-186, 2012. 

A Complexidade da Governança na Inteligência Artificial (IA) a partir das Abordagens de Morin (2003) e Kuhn (1987).

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Nicolas Rufino dos Santos.

Este paper tem como objetivo apresentar o panorama da complexidade da governança no campo da Inteligência Artificial (IA) a partir dos argumentos propostos por Morin, em sua obra “Introdução ao Pensamento Complexo” (2003) e de Kuhn, em “A estrutura das revoluções científicas” (1987). Serão explicadas, resumidamente, as teses centrais de cada um dos autores e, em seguida, o fenômeno da governança no campo da IA e suas intersecções com as teorias desses autores.

O fenômeno da fragmentação do conhecimento, cujas raízes remontam ao cartesianismo, culminou em observações parciais acerca do próprio conhecimento. Nesse sentido, teorias do saber que seriam capazes de resolverem problemas consideráveis da humanidade não podem se limitar a tratá-las separadamente, tampouco a partir do mero acúmulo de saberes, mas através da transformação de seus princípios e da observação multidimensional da realidade (MORIN, 2003).

Morin (2003) argumenta que a sociedade moderna é composta por uma série de problemas resultantes de pensamentos simples, parciais e fragmentados, de modo que disciplinas acadêmicas demonstram-se incapazes de criarem conexões e correlações entre os elementos. Nesse contexto, o referido autor alerta para a emergência da ciência em priorizar uma abordagem que interligue conceitos e elementos dos sistemas, uma vez que a realidade não constitui-se de modo simples, mas de forma multidimensional e complexa.

Em uma perspectiva similar à de Morin (2003), Khun (1987) enfatiza que o desenvolvimento científico se dá através da superação de paradigmas, que são compreendidas como uma “constelação de crenças, valores, técnicas partilhadas pelos membros de uma comunidade científica” (KHUN, 1987, p. 218). Ao entrarem em crise, estes paradigmas são transformados por outros em uma série histórica marcada por determinados ciclos. O progresso científico, portanto, não é produto de um progresso linear, mas resultante de diferentes fases que envolvem irregularidades e conflitos.

A complexidade do tema da governança no campo da Inteligência Artificial (IA) é nítida e materializa-se por determinados argumentos. Os impactos causados pelo aumento da utilização da IA não se limitam às áreas de inovação tecnológica ou de engenharia, mas atingem os campos político, administrativo e sociológico. Nesse sentido, a governança em IA consiste em uma questão importante para o futuro da Administração Pública (DENHARDT, 2001; UZUN, et al, 2022). Este fenômeno surge como um debate multidisciplinar e abrange políticas públicas, engenharia da computação, filosofia, direito, sociologia e relações internacionais (BOSTROM, et al, 2019; UZUN, et al., 2022). Na verdade, não apenas os problemas da IA são multidisciplinares, como também seus benefícios, que são enormes e atingem áreas como medicina e saúde, transportes, educação, ciência, sustentabilidade e desenvolvimento econômico (DAFOE, 2018).

Fonte: https://www.admethics.com/the-need-for-governance-in-the-field-of-artificial-intelligence-ai/

Há um consenso difundido de que os sistemas de IA precisam ser bem governados para que consigam trabalhar em alinhamento com os valores humanos e sociais a fim de usufruir dos benefícios e controlar seus os riscos. No entanto, a literatura sobre governança da IA ainda é desorganizada. Além disso, este fenômeno no campo da IA está inserido em um panorama mais amplo que envolve governança das empresas, de dados e de Tecnologia da Informação (TI), tornando o estudo ainda mais complexo (MÄNTYMÄKI, et al. 2022). 

Independentemente dos conceitos estudados, é certo que o tema da governança em IA tem condicionado os pesquisadores a discussões complexas, de modo que seja impossível desenvolver uma única conceituação universalmente aceita. E independentemente da multiplicidade conceitual, ressalta-se a centralidade do tema nas agendas governamentais, pois ela dialoga diretamente com a qualidade de vida das futuras gerações (UZUN, et al., 2022), de tal modo que tanto governos quanto sociedade civil e setores privados são responsáveis por debaterem sobre a utilização de mecanismos de IA para garantir transparência e accountability para esses sitemas para mitigar os riscos e possíveis desvantagens do uso desses sistemas e, simultaneamente, usufruir do potencial dessa tecnologia (GASSER & ALMEIDA, 2017).

Cabe ressaltar que não somente a governança, como também a ética é objeto de uma complexidade notável de abordagens, bem como constitui-se como um campo de estudos multidisciplinar, complexo e alvo de diferentes interpretações. Por exemplo, Bartneck (2021) define que a ética refere-se aos princípios, julgamentos gerais e normas e, atualmente, é objeto de diferentes escolas de pensamento. Já Resnik (2015) sustenta que a ética é o conjunto de normas que diferenciam comportamentos aceitáveis dos inaceitáveis. Significa dizer que, para que uma teoria ética seja aderente com os problemas atuais, ela precisa constituir-se de forma dinâmica e multidisciplinar. Só assim ela será capaz de abordar determinados problemas específicos no campo da Administração com eficiência.

Ao buscar interligar o fenômeno da governança em IA com a teoria de Morin (2003), podemos reconhecer determinados elementos: (i) a complexidade do fenômeno da governança em IA; (ii) as relações deste tema com outros campos científicos; (iii) as variadas interligações com stakeholders, que apresentam interesses diversos; e (iv) a demanda por um estudo científico integrado que envolva diferentes disciplinas e perspectivas.

Finalmente, uma conexão entre a teoria da revolução científica de Kuhn (1987) com a complexidade da governança na IA consiste nos paradigmas da governança que, com o passar das décadas, são substituídos por novas formas de enxergar este fenômeno. Novos conceitos de governança substituem os antigos e abarcam uma maior quantidade de elementos, complexificando o conceito a partir da interligação com outros elementos. Essa complexificação da governança é o que a qualifica a trazer respostas para as problemáticas que envolvam a IA.

Referências:

BARTNECK, Christopher et al. An introduction to ethics in robotics and AI. Springer Nature, 2021.

BOSTROM, Nick; DAFOE, Allan; FLYNN, Carrick. Public policy and superintelligent AI: a vector field approach. Governance of AI Program, Future of Humanity Institute, University of Oxford. Oxford, UK, 2018.

DAFOE, Allan. AI governance: a research agenda. Governance of AI Program, Future of Humanity Institute, University of Oxford: Oxford, UK, v. 1442, p. 1443, 2018. 

DENHARDT, Robert B. The big questions of public administration education. Public Administration Review, v. 61, n. 5, p. 526-534, 2001.

GASSER, Urs; ALMEIDA, Virgilio AF. A layered model for AI governance. IEEE Internet Computing, v. 21, n. 6, p. 58-62, 2017. 

KHUN, T. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 217-257.

MÄNTYMÄKI, Matti et al. Defining organizational AI governance. AI and Ethics, p. 1-7, 2022.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003 (Trechos escolhidos – p. 57 a 76 e p. 85-93).

RESNIK, David B. et al. What is ethics in research & why is it important. December, 2015.

UZUN, Mehmet Metin; YILDIZ, Mete; ÖNDER, Murat. Big Questions of AI in Public Administration and Policy. Siyasal: Journal of Political Sciences, v. 31, n. 2, p. 423-442. 2022. 



Evidências empíricas na análise da tecnologia da informação: Uma perspectiva neopositivista do marketing

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Hany Ellen Guedes.

A tecnologia da informação (TI) tornou-se uma aceleradora de transformações significativas em organizações dos mais diversos setores e tamanhos. Desde automação de processos operacionais até a análise de dados em tempo real, a tecnologia da informação transpõe toda a estrutura do organograma, desempenhando certo protagonismo nas operações e estratégias de marketing. Parsons (1967), enfatiza que as organizações desempenham funções distintas na sociedade, sendo essencial que cumpram quatro propósitos fundamentais: adaptar-se ao ambiente, alcançar metas, integrar membros e preservar os padrões culturais. Além disso, ele ressalta a tendência das organizações contemporâneas em se tornarem mais complexas e especializadas, a fim de lidar com as crescentes e específicas exigências da sociedade.

A epistemologia do neopositivismo representa uma corrente filosófica que ganhou destaque no começo do século XX, exercendo uma influência duradoura na análise de como o conhecimento precisa ser fundamentado em evidências empíricas. A abordagem defende a ideia de que o conhecimento científico deve se basear em fatos observáveis e em evidências concretas. Em outras palavras, o neopositivismo estabelece um planejamento de verificabilidade para a ciência, intensificando o conceito de demarcação científica ao distinguir claramente o que pode ser considerado como pertencente ou não ao domínio da ciência.

Para compreender como fenômeno e observar adequadamente o impacto da sua influência, adotarei as obras dos autores Dortier (2000), Wittgenstein (1961), Popper (1979) e Parsons (1967) de modo empiricamente fundamentado e particularmente pertinente ao contexto das organizações contemporâneas isolando em partes. Em Wittgenstein (1961), percebe-se uma lógica positivista sendo levada ao seu ponto máximo. O autor utiliza o método de observação racional e objetiva dos fatos, levando-o a isolá-los, codificá-los e descrevê-los quase como fórmulas. Ele acredita que suas afirmações sobre esses fatos são verdadeiras ou falsas, específicas uma representação direta do mundo real, do que é concreto, excluindo qualquer margem de subjetividade.

Fonte: https://olhardigital.com.br/2021/08/06/seguranca/pentagono-quer-que-inteligencia-artificial-preveja-o-futuro/

A observação racional do fenômeno é o primeiro passo no processo. Ao analisar empiricamente o uso e a implementação da tecnologia nas organizações, torna-se possível identificar padrões, tendências, efeitos e impactos tangíveis. Ela envolve uma análise detalhada e sistemática das interações entre a tecnologia e as atividades de marketing de uma organização. Através da observação direta e da coleta de dados quantitativos e qualitativos, podemos identificar padrões, tendências e correlações. Por exemplo, podemos observar como a implementação de um novo sistema de gestão de consumo afeta na eficácia das campanhas de e-mail marketing ou como a introdução de inteligência artificial influencia o comportamento do consumidor. Essas observações fornecem a base empírica indispensável para uma análise crítica e embasada. De acordo com Dortier (2000), o Círculo de Viena, em sua abordagem da "concepção científica do mundo", postula que apenas a ciência fundamentada em demonstração rigorosa e observação dos fatos é capaz de contribuir para o progresso do conhecimento.

Na próxima etapa do processo consiste na verificação das observações, que trata de submeter os dados relacionados e as conclusões obtidas a uma apuração rigorosa. Aqui, podemos envolver a aplicação de métodos de pesquisa quantitativa, como análises de estatísticas e modelagem de dados para verificarmos as observações feitas. A verificação possibilita assegurar que as conclusões sejam mais confiáveis e sólidas sobre o fenômeno. Segundo Dortier (2000), o grupo rejeita a metafísica e defende que o conhecimento científico deriva tanto de proposições lógicas e matemáticas (desvinculadas da experiência), quanto de proposições empíricas, as quais se baseiam em fatos e devem passar por critérios de verificação para serem consideradas como verdades.

Outro processo fundamental do neopositivismo é o teste de hipóteses, sendo necessário para aprofundar a compreensão do fenômeno em questão. Os testes de hipóteses empíricas permitem uma compreensão mais profunda de causa-efeito entre a tecnologia e o desempenho das estratégias de marketing, para testar as hipóteses podemos submeter a experimentos controlados ou análises de estatística. Wittgenstein (1961), procura esclarecer as condições lógicas que o pensamento e a linguagem devem atender para representar o mundo – e o mundo é reduzido a um conjunto de fatos, cujo sentido está fora dele. Essas proposições que o autor destaca são exceções ou imagens da “realidade”. Assim, segundo o autor, “a filosofia deve tomar os pensamentos que, por assim dizer, são vagos e obscuros e torná-los claros e bem delimitados” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 77). 

A corrente do neopositivismo também enfatiza o falsicanalismo, o que conota que as teorias e hipóteses devem ser formuladas de maneira a serem passíveis de refutação por evidências empíricas. Sendo necessário, estarmos dispostos a ajustar nossas interpretações e teorias ao surgimento de novas evidências relacionadas ao fenômeno, como por exemplo uma tecnologia que inicialmente parecia promissora e que após a implementação não gerou o resultado esperado em termos de engajamento com o consumidor, que nesse caso dentro de uma organização que depende de consumo leva a área de marketing reavaliar e modificar a estratégia. Popper (1979) é influenciado pelos neopositivistas, porém ele se distingue deles ao mesmo tempo em que os critica. O autor enfatiza a importância das "provas objetivas" no contexto científico, mas sustenta a ideia de que devemos procurar refutar ou validar as hipóteses de forma provisória, jamais considerando as evidências como conclusivas.

Nesse contexto, mesmo que as obras aqui referenciadas em algum dos casos tenham mais de 50 anos da sua publicação, se mantém relevante aos fenômenos contemporâneos organizacionais e pode ser utilizada metodologicamente com solidez, através da observação crítica, da verificação, dos testes de hipóteses e do falsicanalismo para embasar estratégias de marketing em dados empíricos. Parsons (1967), argumenta que as organizações buscam um equilíbrio entre suas funções e a necessidade de adaptação ao ambiente em constante mudança. Ele vê o desenvolvimento das organizações como um processo de aprendizagem e ajuste contínuo.

Referências: 

DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p). 

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da USP, 1961. (trechos escolhidos). 

POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (org) Organizações Complexas. São Paulo, Atlas, 1967. 

Breves reflexões epistemológicas

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Larice Steffen Peters.

Ao realizar a leitura de A lógica da investigação científica de Popper (1979) inúmeras reflexões sobre a evolução da ciência e, consequentemente, da epistemologia vieram à toa – diga-se de passagem que isso ocorre em todas as leituras recomendadas da disciplina de epistemologia, mas quanto mais vamos conhecendo diferentes epistemes maior é o fio e o pano para a construção de reflexões.

Em todas as leituras, é preciso compreender que estamos falando de demarcação científica. Logo, compreender o que é a ciência e como ela se origina é buscar compreender como o ser humano age e interpreta o funcionamento do mundo em um determinado contexto (Demo, 1985), o que em outras palavras pode ser dito da seguinte forma: a ciência é produzida no tempo, em diferentes contextos e portanto sua demarcação muda (Demo, 1985).

Feita essa breve introdução, que tem sido o ponto de partida para todas asreflexões que faço sobre a ciência, gostaria de destacar sobre o quanto ao buscar a demarcação científica alguns grandes pensadores visam promover a instauratio magna – usando as palavras de Bacon (1979) -, uma grande restauração para dizer o que aceitam ou não como ciência.

Fonte: https://cienciasecognicao.org/redeneuro/tag/pesquisa-qualitativa/


Se considerarmos o que Popper defende como ciência, na qual o que é válido como ciência se ancora no método hipotético-dedutivo e na falseabilidade (1979), pergunto de que forma esse pensamento é capaz de contribuir para a compreensão de fenômenos que nascem de forma indutiva ao passo que o próprio autor caracteriza que o “princípio da indução é supérfluo e que leva necessariamente a inconsistências lógicas” (p. 5). 

Além de reflexões sobre a possibilidade de construir ciência com base no método indutivo, podemos nos perguntar qual seria o espaço para as dialéticas de Hegel e Marx: de que forma olharíamos para a tese, antítese e síntese para compreender os fenômenos sociais? Como a ontologia do devir é possível dentro dessa visão que defende uma nova racionalidade? (Foulquié, 1978; Marx, 2011).

Qual local ocupa a fenomenologia? Como podemos aplicar o epoché e ter tomadas de consciência intencionais se o que ela preconiza é uma crítica ao método indutivo e ao método dedutivo (Husserl, 2008).

Essas reflexões, me levam também a analisar as diferentes epistemes com a história dos métodos qualitativos: uma história marcada por distanciamento do sujeito para garantir maior neutralidade científica, marcada por tentativas de incorporação de visões das ciências ditas “duras”, positivismo, racionalidade, para – finalmente – compreender que sua abordagem para a compreensão de fenômenos sociais possui características únicas e que tem o poder de influenciar e ser influenciada pelos próprios fenômenos que estuda (Dezin; Lincoln 2006). 

Seguindo as reflexões relacionadas aos métodos qualitativos, frente às visões de Popper (1979), como poderemos usar métodos indutivos – como a análise temática, por exemplo (Braun; Clarke, 2006) – para compreender os fenômenos sociais e a partir daquilo que eles, particularmente, nos transmitem criar e estabelecer nossas categorias e dimensões de análises? Qual o espaço para a grounded-theory dentro dessa perspeciva (Bandeira-de-Mello; Cunha, 2006)?

Por fim, as reflexões aqui apresentadas estão longe de esgotarem as inquietações que estudar a evolução da ciência acarretam quando correlacionadas com os estudos de fenômenos sociais. Cabe, por parte do pesquisador, saber que a demarcação científica é temporal e que a construção do conhecimento é algo que está em devir e nos leva a construção de conhecimentos provisórios que jamais estão definitivamente acabados (Japiassu, 1991).

Referências:

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos).

BANDEIRA-DE-MELLO, R.; CUNHA, C. J. C. de A. Grounded Theory. In: Christiane Kleinubing Godoi; Rodrigo Bandeira-de-Mello; Anielson Barbosa da Silva. (Org.). Pesquisa Qualitativa em Organizações: Paradigmas, Estratégias e Métodos. Pesquisa Qualitativa em Organizações: Paradigmas, Estratégias e Métodos. 1ed.São Paulo: Editora Saraiva, 2006, v. 1, p. 241-266.

BRAUN, V. CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology.Qualitative Research in Psychology, 3 (2). p. 77-101. 2006.Disponível em: http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a795127197~frm=titlelin k.

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.

DEZIN, N. K. ; LINCOLN, Y. S. A disciplina e a prática da pesquisa qualitativaIn: DEZIN, Norman K. ; LINCOLN, Yvonna S. (Orgs). In: O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006, p.15-41. 

FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66.

HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857- 1858; esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 

POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

A fenomenologia e o esporte

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Lucas Sell Romão.


Este paper busca observar a relação entre a fenomenologia, que se concentra na análise da experiência subjetiva de como os indivíduos percebem e interpretam o mundo ao seu redor, e o esporte, uma área que envolve o exercício físico, consciência corporal, treinamento e competição. A fenomenologia pode oferecer insights valiosos sobre como a prática esportiva afeta a experiência pessoal e subjetiva dos atletas, bem como sua consciência corporal e as implicações para o desempenho esportivo.

Fenomenologia significa discurso sobre aquilo que se mostra como é. Daí a ênfase no sujeito e a preocupação em identificar os objetos da consciência. Schütz (1979), Husserl (2008), compreendem que o fenômeno é tudo aquilo que possui vivência, o aparecer e o que aparece. Husserl (2008), acredita que a máxima da fenomenologia é voltar as próprias coisas. Os fenômenos captados da consciência exteriorizam as experiências, a verdade, o como as coisas são feitas. Na fenomenologia não há pressuposições, parte-se do zero e a ênfase é centrada no sujeito.

Silva (2014), discute o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência do atleta. Carvalho (2009), observa que para o senso comum, os esportes significam qualquer forma de exercício físico ou diversão, mas, para os estudiosos é muito mais do que isso, sendo um fenômeno humano que constitui um conjunto social e cultural e deve ser analisado como um sistema de normas, valores e representações que se difunde na sociedade de diversas formas. Dessa maneira, a experiência do atleta desempenha um papel fundamental no esporte, sendo importante saber como o atleta vivencia e sente seu próprio corpo durante a atividade esportiva.

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Kunz (2007), acredita que a experiência é a sensibilidade que os atletas precisam ter quanto ao ritmo, precisão, elasticidade, fluência, harmonia, enfim, em relação a um estilo próprio, que define a qualidade dos movimentos realizados. Alguns atletas descrevem uma sensação de fusão entre corpo e mente, o que implica que o corpo não é apenas um objeto que executa ações, mas uma parte integrante da experiência do atleta. Assim, a fenomenologia pode ajudar a desvendar como os atletas vivenciam o movimento, o esforço e a propriocepção durante a prática esportiva.

Para Merleau-Ponty (2011), um movimento é aprendido quando o corpo compreende, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo. Quando o corpo aprende o movimento, não é preciso mais pensar nos detalhes para realizá-lo. O gesto técnico deixa de ser desconhecido, nos misturamos a ele e fundamo-nos corporalmente. Atletas desenvolvem uma percepção aguçada de seu ambiente, bem como de seus próprios corpos e das interações com outros atletas.

Silva (2014), exemplifica que, quando um atleta recebe a bola no ataque, precisa olhar rapidamente para saber onde está posicionado, a qual distância está do gol, onde se encontra o adversário mais próximo e decidir se é possível o passe, o drible, ou mesmo o gol. Entretanto, quando adquirimos experiência, o saber adquirido pelo corpo dirige à situação requerida de maneira rápida e precisa. Não é mais necessário olhar fixamente para a bola, o posicionamento dos adversários, nem a cor dos uniformes daqueles que nos rodeiam. Depois de alguns anos, basta sentir o jogo, ver com um só olhar tudo e todos ao mesmo tempo. Com isso, a atenção e a tomada de decisão desempenham um papel crítico no desempenho esportivo, e a fenomenologia ajuda a analisar como os atletas processam informações sensoriais e respondem a elas de maneira consciente.

Polanyi e Prosch (1975), observam também que os atletas possuem outra forma de conhecimento de seu corpo que raramente é levada em conta, sendo ele, um conhecimento incorporado às capacidades afetivas, motoras, cognitivas e verbais. Esse conjunto de habilidades é desenvolvido pelo atleta ao longo dos anos de prática, tornando-o capaz de diferenciar quando está bem ou não, ainda que ele não consiga explicar o que seja esse bem. A fenomenologia permite ainda, explorar a experiência emocional do atleta. Como o atleta vivencia o medo, a ansiedade, a alegria, a satisfação e outros estados emocionais.

A compreensão da experiência subjetiva do atleta pode auxiliar no treinamento onde os treinadores podem usar abordagens fenomenológicas para ajudar os atletas a melhorar seu desempenho, promovendo a consciência e o controle emocional. Para Silva (2014), a prática esportiva é composta por uma considerável tensão e excitação, dor e prazer, anseio e emoção, sendo sem dúvida uma prática que permite ao homem sentir e ver o mundo de forma diferente. Assim, aplicar a fenomenologia no treinamento esportivo é interesse, visto que compreender a experiência subjetiva dos atletas pode ser valioso para treinadores e psicólogos esportivos, permitindo o desenvolvimento de estratégias mais eficazes para aprimorar o desempenho e o bem-estar dos atletas.

Como observado, a relação entre a fenomenologia e o esporte é complexa onde a fenomenologia pode oferecer uma perspectiva valiosa para compreender a experiência subjetiva dos atletas, destacando a importância da consciência corporal, percepção, tempo, espaço e ação no desempenho esportivo. À medida que essa abordagem continua a se entrelaçar com o esporte, novas oportunidades de pesquisa e aplicação prática surgem, beneficiando tanto atletas quanto acadêmicos interessados. Assim, a pesquisa fenomenológica no esporte pode ajudar a melhorar o treinamento, o desempenho e o bem-estar, podendo ter implicações práticas no desenvolvimento de estratégias de treinamento e no apoio psicológico a atletas de todas as idades e níveis de habilidade.


REFERÊNCIAS

 

CARVALHO, C. A. Psicologia e esporte: um olhar fenomenológico para um encontro marcado pela modernidade. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 15, n. 2, p. 149-156, dez.  2009.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672009000200011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out.  2023

 

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

 

KUNZ, E. Esporte: uma abordagem com a fenomenologia. Movimento, [S. l.], v. 6, n. 12, p. I-XIII, 2007. DOI: 10.22456/1982-8918.2503. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/2503. Acesso em: 16 out. 2023

 

MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

POLANYI, M.; PROSCH, H. (1975) Meaning. Chicago: University of Chicago Press.

 

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

 

SILVA, L. M. F. Esporte como experiência estética e educativa Esporte educativa: uma abordagem fenomenológica. 2014. 191 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.